Podemos nos desvencilhar, aqui, da
ladainha sobre o que pode ser considerado como “normalidade”, sendo melhor
considerar a que o conceito de normalidade serve; sim, deve haver algum intuito para que ele seja direta e
indiretamente evocado.
O que
parece ser aterrorizante à sociedade moderna é o sujeito que não produz ou
consome de forma utilitarista, permanecendo como rebotalho do ideal de desenvolvimento
moderno. Em contrapartida, a ciência médica ao esquadrinhar, mapear, o cérebro declara
a dificuldade em determinar uma pura “normalidade” no comportamento humano;
contudo em nossa era não é necessário ser “normal”, pois o indivíduo que
cultive uma certa agitação consumista e o frenesi festivo também será bem
aceito; o expansivo adolescente tardio, extemporâneo, e o comprador compulsivo
são socialmente aceitos até o ponto no qual gerem ônus ao não pagar a fatura do
cartão de crédito. Talvez não seja descabido supor que a “normalidade”,
antes apregoada pelo despeito moralista
e pelo recato que animava as boas famílias, passou a ser observada sob princípios
mercadológicos de saúde e bem-estar
social que parecem, mais do que nunca, interferir nas relações interpessoais;
como se esses princípios fossem
colocados para tentar suprir a falência dos limites na educação e na
convivência entre as pessoas; talvez, ainda, o impalpável discurso
politicamente correto seja uma tentativa canhestra, trôpega, de resgatar valores
que estariam deturpados. Eis uma bela tese para se aventar em uma
crônica ligeira.
Recordemos que, em nossa pitoresca
capital, havia uma senhora que zanzava
tranquilamente pelo shopping usando maquilagem pesada e um tanto quanto bizarra ao
olhar bovino dos transeuntes; decerto que “ a velha do shopping” –– essa era
sua alcunha –– transitava tranquilamente consumindo e celebrando as alegrias
que um shopping pode proporcionar. Tempos depois a bem intencionada ação de
orgãos públicos de saúde mental buscou sanear a imagem de louca da famigerada “velha do shopping”; fotos
foram divulgadas nas quais ela ostentava o aspecto rutilante da normalidade que
não incomoda ao olhares alheios. Embora devamos recusar o tentador recurso à
especulações sem embasamento, não podemos negar o fato: pouco tempo após o
plano de intervenção ––– para sua saúde mental e seu vestuário ––– ter sido
aplicado tivemos a notícia de seu fim trágico após se deixar cair de um viaduto
na capital da qualidade de vida.
Não é
surpresa afirmar que o indivíduo procura a psiquiatria, a psicologia e a
psicanálise para que essas especialidades garantam sua normalidade sintomática;
raramente algum ímpeto “heurístico”, acerca de seu sofrimento subjetivo, move
sua queixa até os consultórios. O indivíduo dito “normal”, neurótico, chega
sôfrego em busca de garantias de que não está enlouquecendo, pois estranha
quando algo do inconsciente irrompe em seu comportamento habitual; a disjunção
psíquica entre o que ele deseja e as
demandas alheias, sociais, aparece causando forte incômodo ao pensamento
consciente.O desejo e a repetição embaraçosa de situações e relacionamentos
malogrados causam sofrimento psíquico deixando o indivíduo, cultor de sua suposta
normalidade, meio enlouquecido –– descarrilado. De modo anedótico, o indivíduo
neurótico se assemelha ao gato de Cheshire em Alice no país das maravilhas, de Lewis Carrol, pois em um diálogo
com Alice esse gato se julga louco apenas por agir de modo oposto ao de um
cachorro. Nesse romance, há a marcante
descrição de um mundo com seres fantásticos que habitam uma espécie de realidade
alternativa e subversiva.
Também não devemos acreditar que há um
limite clínico tênue, volátil, entre a loucura
e outros quadros de sofrimento psíquico, embora haja quadros clínicos de
difícil diferenciação diagnóstica. Existem fenômenos psicopatológicos precisos que nos permitem,
por exemplo, estabelecer a diferença entre uma esquizofrenia e um quadro de
pânico( medo) neurótico, ––– o que torna o diagnóstico essencial para a
condução do tratamento psicanalítico. Em contrapartida, um ilusório conceito de
normalidade não figuraria como garantia de diagnóstico nem indicaria algo útil
do ponto de vista clínico para a psicanálise. Árduo estabelecer o que é normal
em um indivíduo que se constitui de modo único e singular a partir de seu romance familiar e de seu meio social. Para
Freud o sujeito que conseguisse, de alguma forma, amar e criar estaria próximo ao
que se pode considerar como saudável, porém isso não significa a mera adaptação
pragmática, mercadológica, mas sim certa consonância com o desejo inconsciente.
É patente o desconforto da sociedade ante os
indivíduos que não produzem e consomem ––– verdadeiro estorvo para os ideais de
desenvolvimento e prosperidade. Desse modo, o louco, o dependente químico grave,
o senil etc formam uma incômoda massa que não combina com adestramento da
compulsão consumista e do hedonismo festivo. Então, o indivíduo comum tende a
ficar enlouquecido quando passa a não conseguir uivar conforme esse
adestramento lhe ensinou e daí corre para os consultórios; no entanto não para tentar
trilhar qualquer caminho de seu desejo através de seus dramas, mas para que os
trilhos de sua anódina rotina sejam retomados.
Na
novela “ Minha vida “ –– do escritor russo
Anton Tchekhov –– o protagonista Missail não corresponde às expectativas
de seu pai que destinava a ele um bom cargo no funcionalismo público russo, no
entanto Missail recusa o confortável futuro vislumbrado por seu pai. Porém
Missail não demonstra possuir nenhum talento, apenas assume a ocupação de
pintor de paredes sequioso por uma vida simples em comunhão com os mais
humildes. Após se casar, vai viver na zona rural em uma pequena propriedade,
mas além de ser enganado e ofendido pela ignorância dos mujiques termina
abandonado por sua esposa. Após o fracasso de sua experiência bucólica, Missail Póloznev deixa o idílio comunitário
campestre e voltar a ser pintor de paredes em sua cidade. Surpreendentemente essa
novela, de 1896, não nos revela um personagem que se rebela contra a
determinação social e a autoridade paterna em prol da busca da realização de
seu talento, senão um jovem errante que não se adapta às demandas familiares e
sociais ––– um outsider do século
XIX. Diferentemente do Wilhelm Meister de
Goethe, no qual a personagem busca empreender sua formação estética e
humanística para descobrir sua vocação, Missail é um homem desajustado. Livres
da tola pretensão de diagnosticar autores e personagens, fiquemos com o
inevitável incômodo desta narrativa de Tchekhov que tem o seguinte subtítulo: “
Conto de um provinciano”.
Entre
a normalidade bovina e o frenesi obrigatório, socialmente apreciado, resta o
abismado homem moderno ainda mais deprimido e angustiado.
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